Domingo. E a casa vazia. Vazia menos eu, as duas gatas e a cadela. E estava bem assim.
O Sol entrava pelas aberturas das portadas da janela e eu deixei-me ficar, acordada, aninhada no calor aconchegante que os lençóis têm sempre de manhã. Ao Domingo não há pressas, e menos ainda com a casa vazia.
Nem pressa para o pequeno-almoço, que é quase sempre a refeição que melhor me sabe, nem para o almoço.
Fiz bolo de chocolate a seguir. Porque sim. Porque me apeteceu. E ficou bom.
Li um bocadinho ao Sol, sentada nas escadas de pedra que vão das laranjeiras para a horta (que não o tem sido há já muito tempo) e espreitei, com a noção da sorte que tinha, a águia pousada, pachorrenta, bem no topo de um carvalho, na mata ali ao pé.
A calçada do páteo à frente da casa, já tem as primeiras ervas a nascer entre as pedras. É sempre a mesma coisa, depois das primeiras chuvas. E estava húmida nas zonas onde estava sombra. Esteve assim todo o dia, e dava uma sensação de desconforto, apesar do Sol e do céu azul.
Uma amiga convidou-me para ir a casa dela, mas não me dava jeito. Veio cá ela, que era mais fácil e até fazia mais sentido.
No fim da semana vai para outro continente. Vai para África e isso faz-me um bocado de confusão, porque parece que vai estar fora anos. Mas não. Não vai para África, vai a África, o que é diferente. Pode até ser só uma semana. Mas fico sempre com a sensação que vai para muito longe, muito tempo.
Fizemos chá e acendemos a lareira.
Gastámos um bule inteiro e fizemos outro. Gastámos quase um cesto de lenha na lareira e comemos quase o bolo completo.
Mas, sobretudo, falámos. Falámos durante muito, muito tempo. Dissemos muitas coisas. Entre elas algumas, aparentemente, contraditórias.
Somos muito amigas. Muito. Amigas de verdade.
O destino pregou-nos a partida, até, de passarmos por coisas semelhantes com pouco tempo de intervalo uma da outra. Ficámos mais próximas, mais solidárias, identificamo-nos mais.
E no meio da conversa, eu pedi-lhe que compreendesse que havia assuntos que eu queria resguardar mais, que há vivências que requerem um espaço próprio, um espaço com porta.
Acho que me expliquei mal. Faltaram-me as palavras certas e agora passa-se o mesmo.
Sou mais amiga dela hoje do que ontem, e ontem mais do que no dia antes, e assim por aí fora.
Acho que com ela se passa o mesmo.
Mas há coisas... que, realmente, senti necessidade de resguardar, não porque não confie nela, não porque não tenha noção do tamanho e da solidez da nossa amizade, não que ache que ela não me compreenda, não que não tenha bem noção do valor de uma amizade verdadeira. Nada disso.
Há coisas que um dia percebemos (ou sentimos) claramente que são aparte do resto. Que é assim que são, que é essa a realidade, que essa é a única maneira válida de as vivermos, e que, até é assim que as queremos.
Pedi-lhe que compreendesse que sentia a necessidade, por vários motivos, de fechar a porta do quarto.
E porque continuo a ter noção que não consigo explicar-me bem, espero que a amizade lhe permita perceber o que as minhas palavras não explicam.
Porque este correr de cortina, não é nada mais do que isso, não significa uma quebra de confiança ou amizade, e parece-me até que lhe faria bem fazer o mesmo.
Não há assuntos interditos. Mas há uma altura em que sentimos necessidade de resguardar algumas coisas. Porque é a assim, porque é assim o rumo da vida e nós vivemos de acordo com isso apenas.
Nada mais muda. Nada! Porque a amizade é uma benção que todas as pessoas têm na vida e a dela é impagável.
Terminámos a dia a tagarelar e a rir muito.
(Acho que me entendeste!)