segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Lugares

Lá em cima é assim. Chega-se, e é-se recebido primeiro pelos saltos entusiasmados do Soajo, bom e fiel cão de guarda.
De seguida, vem a E. à porta, quase sempre de pano na mão, vinda da cozinha. Ri-se e avança em nossa direcção de braços e sorriso abertos e repetindo, embevecida: ...as minhas meninas...
Abraça-nos de forma decidida, larga-nos, afasta-se um pouco para nos avaliar e diz sempre que estamos magrinhas e a precisar de descanso e das comidinhas que faz. Muitas vezes estamos mesmo. Não magras, mas a precisar de descanso e das suas comidinhas, já para não falar dos seus mimos.
Depois volta a abraçar-nos e de seguida empurra-nos para dentro de casa.

Uma boa parte das vezes que lá vamos (sobretudo eu), é para curar feridas da alma. E ela adivinha-as no caminho que faz da porta, até ao carro.
Desta vez parou antes de nos abraçar pela primeira vez. Os olhos vermelhos de horas de choro, de dias (de semanas, de meses já), das suas meninas não enganavam. E bom mesmo foi poder dizer-lhe a que se deviam, sem medos nem rodeios. Lá, podemos sempre ser quem somos, sem esconder nada nem medo de julgamentos ou penalizações.
Benzeu-se com a convicção e força que as mulheres do Minho guardam. Pronunciou um Deus os guarde, de olhos postos no céu, e empurou-nos para a cozinha com determinação. E só depois de nos por à frente duas chavenas de chá de lúcia-lima, da horta, lhe vimos umas lágrimas na cara. Tentou disfarçar mas saltamos-lhes as duas para o seu pescoço. Estranho, mas é ali que me sinto em casa.

Durante esse fim-de-semana cuidou das suas meninas. Enquanto ia repetindo que não achava bem que estivessemos ali sózinhas. Levou-me o pequeno-almoço à cama enquanto se queixava que a cama era demasiado grande só para mim. Percebia bem o que queria dizer, mas aquela cama é a mesma onde sempre fiquei. Depois sentou-se na cama, deu-me um abraço demorado e passou-me a mão devagar pelos cabelos. Eu senti-me com cinco anos. Ela riu-se e disse que afinal se eu não estivesse sózinha não se sentiria à vontade para estar ali a dar-me mimo. A sabedoria de retirar as coisas boas de todas as situações...

Ela e aquela casa enorme de granito são uma fortaleza e, o mesmo tempo, um ninho.

E, não muito longe dali, a Lapela, sólida e protectora, agora como no Sec. XII, quando nasceu e foi menina. Quando o Lourenço de Abreu a contruiu, e quando o D. Afonso Henriques lhe deu um destino e uma função, ela protegia de outros males mas, 900 anos depois, continua a estender a sua sombra protectora aos netos de quem lhe deu origem. Outros tempos, outros males...

E o rio Minho, mesmo, mesmo aos seus pés, e a água fria, boa para os peixes. E os seixos que vou pisando até me esquecer do frio da água, e me atirar lá para dentro. No fim de semana passado, o Sol ainda reconfortava com o seu calor à saída da água. Às vezes (quase sempre), acho que aquelas águas são milagrosas.

E o tempo levou uma eternidade a passar, de um modo. E escorreu-me por entre os dedos, de outro.
Não queria ter voltado. Nunca quero. Sempre, desde pequena, achei que o meu caminho era mais para Norte. Não sei onde ainda. Mas mais para Norte, sempre soube que era.

Dizem que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes. Eu acho que há lugares onde devemos voltar sempre. Sempre.
Felizes, ou infelizes. Com energia ou cansados. Com sorrisos ou com lágrimas. Sózinhos ou acompanhados.
Há lugares onde se deve voltar sempre. E mesmo quando se parte, devemos levá-los sempre connosco.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Tesouros

Se ocorresse uma catástrofe e só pudesse salvar um número muito restrito de objectos, tão pequeno que pudessem caber num bolso, levaria estes.
E levaria sempre esses, independemente do número e das dimensões dos objectos que tivesse oportunidade de salvar.

Um vestido de bebé que me foi dado pelo meu Avô, pouco antes de morrer, que lhe tinha sido dado pela Avó dele, e que ele chegou a vestir.
Um terço que encontrei, acidentalmente, quase completamente enterrado num páteo de cá, e que me foi dito depois que tinha sido da minha Trisavó, de quem herdei o nome.
Uns brincos de ouro, que foram dessa mesma trisavó que, por sua vez, os tinha herdado de uma Avó.
Uma vieira, cuja história não revelo aqui.

E se tudo parece remeter para um passado, encerrado, nada é mais ilusório.
Podia discorrer longamente acerca do que cada um me diz e dá, mas isso, para além de ser demorado, é excessivamente privado para o fazer aqui.
Todos eles, à sua maneira, são bem o contrário disso. Sinal de que existe em tudo uma linha de continuidade, que os caminhos são longos, que tudo é complementar, que há ciclos longos e ciclos curtos, que há uns que se fecham, finalmente. Que há um sentido para as coisas, e que ele, a seu tempo, se tornará claro.

Nestes objectos estão, provavelmente todas as respostas de que preciso, incluindo uma que diz que não vale a pena querer saber tudo de uma vez, nem tentar agarrar o mundo todo de repente, que cada coisa acontece por um motivo e que, a seu tempo, tudo se encaixa num puzzle, finalmente, completo. Um dia...

Eram os objectos que salvaria.
Não eram os mais úteis. Na verdade, do ponto de vista prático, não teriam qualquer utilidade.
Também não eram os mais valiosos. Se excluirmos os brincos, o valor económico de todos eles é absolutamente insignificante. Incluíndo das rendas do vestido, apesar de serem finíssimas rendas trazidas da Flandres, do tempo em que tudo era trazido a cavalo. E mesmo os brincos, não são, de todo, a joia mais valiosa que existe em casa.
Mas são os mais importantes para mim. Os que me fazem falta. E cada um de nós, lá terá os seus tesouros, os principais dos quais nem serão visíveis.

Renascimentos

Para mim, para ele, e paz para o terceiro elemento.
Sendo que aqui não há primeiros, segundos e terceiros. Ou o terceiro é um segundo exequo. Ou então é um primeiro exequo.
Mas o elemento que não está exequo com os outros dois é que é o primeiro, afinal de contas, mesmo que seja o terceiro cronológicamente.

Renascimento, e ponto final.
Que é disso que se trata. Um certo tipo de renascimento, mas um renascimento assim mesmo.

[Post (aparentemente) confuso, efectivamente intrincado, hermético e muito privado. é, um dos mais sentidos de sempre, e julgo que não corro grandes riscos de errar se disser que é o mais sentido de todos, até hoje]

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Do fim-de-semana

Os meus lugares preferidos. Meus lugares, de facto. Ou, mais exactamente, lugares a que pertenço. Já não ia lá há mais de um ano.
E uma amiga que é uma verdadeira irmã.

E, ainda assim, um dos mais difíceis da minha vida. É o que há a contar.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Eternum

Esta música é a mais bonita do mundo (tens razão Gralha, é das coisas mais bonitas do mundo, a par dos sorrisos de quem amamos, pois). Não tenho muita paciência para as coisas doYou Tube, mas esta vale a pena.

Ouço-a, como sempre, desde há tanto tempo que nem tenho já memória, de olhos fechados. E vejo sempre luz, uma luz muito brilhante, e um céu muito azul e as asas de um anjo por cima de nuvens fofas e brancas. Sempre isto. E acho sempre, enquanto a música não acaba, que estou a subir para lá, para esse céu muito azul, e essa luz muito brilhante, na companhia desse anjo, a quem nunca vi o rosto. E a paz, a leveza... são indescritíveis.

As lágrimas e os sorrisos sempre se misturaram com esta música, em simultâneo, porque as lágrimas nem sempre são de tristeza.

Mas hoje queria ouvir esta música sem parar, entrar na Igreja de Santa Maria Maior, em Barcelos, atirar-me para o chão em frente à imagem da Nossa Senhora da Franqueira e desfazer-me em lágrimas até à última célula, ao último átomo. E entranhar-me para sempre, invisível, naquele chão.

E a alma, finalmente leve, que seguisse esse anjo e não voltasse nunca.

Porque há momentos em que não podemos mais e eu não consigo mais fingir o contrário. Aceito a minha fraqueza e rendo-me.

[Quase] Exclusividades

Encontrei, por acaso, uma senhora de uma aldeia escondia de Trás-os-Montes. E encontrei-a por detrás de um tear com muitos anos, a tecer um tapete como se fazem há séculos, com a lã dos rebanhos que pastam por aquelas serras de clima agreste, tingida e fiada como há séculos.
Encontrei-a por acaso, aqui pertinho, com esse tear. Amanhã volta ao seu sítio. Hoje perdi [ganhei] mais de uma hora, enfeitiçada por aqueles movimentos e embalada pela sua conversa ritmada e suave.

Deparei-me com um tapete grande, feito assim, e foi amor à primeira vista. Quero um desses para mim, talvez um nadinha maior. Mais tarde, porque agora não tenho onde o pôr.

A aldeia, que ninguém conhece, conheci-a eu, logo no ano em que comecei a trabalhar na tese de mestrado. Encontrei-a num pergaminho muito amarelicido pelos seus mais de setecentos anos. O nome era muito estranho, fixei-o.
Encontrei-a depois, muitas mais vezes.
Conheço-a tão bem que a senhora se admirou com o meu sorriso quando me disse de onde era: De X?! conheço tão bem!
Pois, conheço. Muito bem. Mas nunca lá estive. Mas conheço-a de olhos fechados, há séculos. Se calhar continua quase igual.

Os tapetes são lindos, os materias são os melhores, a forma como são confeccionados uma preciosidade e o sítio onde são feitos, um paraíso perdido. Os preços, até são baixos.
Eu quero um para mim, pois. Mais tarde. E hei-de ir lá buscá-lo, àquela senhora tão simpática, àquele sítio tão longe, onde nunca estive mas conheço tão bem.
Quero um tapete desses e nenhum outro, porque há coisas que se encaixam como peças de puzzles, como se tivessem sido destinadas assim e não de outro modo, mesmo que seja apenas um tapete.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Aldeia

E depois venham dizer-me que o mundo não é uma aldeia.
O mundo todo. Com o mundo virtual, inteirinho, lá dentro.
Não é uma aldeia, é uma aldeola.

Vão lá ver o post do dia 27 de Setembro, deste senhor, e depois digam que não é assim.

(Por acaso nunca entrei numa sala de chat. nunca senti necessidade, nem sequer, a menor curiosidade. E, por mais do que um factor, cada vez menos. O que muito me tranquiliza.
Ou, se calhar, o que há a sublinhar daquilo, é a dificuldade que muitas pessoas têm em comunicar. O que se atendermos ao facto de que todas as relacções, em geral, e os casamentos em particular, terem de ser construidas e assentarem os seus alicerces nisso mesmo: na comunicação (para além dos afectos, claro) e na capacidade que ela gera de se chegar a um entendimento e a um ponto de convergência, então não nos podemos admirar dos descalabros que vemos acontecer. E o que é curioso, é que eles até conseguiam entender-se. Curioso, para não dizer desconcertante. Assim o tivessem tentado.
Desconcertante, ou trágico? Bom... isso daria uma longa conversa.
Porque as harmonias e cumplicidades não caiem do céu no nosso colo. Ah, pois, e como disse à criança, eu não tenho marido, mas relacionamentos temos todos e há verdades muito evidentes.)

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Das vindimas

Este ano não há fotografias destas, o ano não nos brindou com esta metamorfose das folhas de verde para vermelhos brilhantes.

E também não haverá posts como este ou este.

Porque eu ando cansada, porque o ano decorreu de outra forma, porque a colheita não é, nem em quantidade nem em qualidade, nada de admirável. Porque nestas coisas, a natureza funciona assim e se há coisa que aprendi nestes anos, foi a respeitar estes ciclos. É assim, naturalmente, sem dramas, nem inquietações, nem queixas. Se calhar, também, porque se instalou alguma habituação, alguma rotina e algum distânciamento emocional.
É assim, calmamente. E a calma, em si mesma, sabe-me bem.


terça-feira, 9 de outubro de 2007

Eu e o CCB


Este é um post um bocadinho para o maldizente, porque o é. Tenho de o admitir.
Eu até gosto do CCB, confesso. Polémicas à parte, eu gosto do edifício, gosto da arquitectura e até gosto do conceito da coisa. Acho que nos fazia falta. Foi um benefício.
Claro que gostaria que tivesse sido contruído mais um bocadinho ao lado, de modo a ocultar menos os Jerónimos, que podem ser mais velhinhos, mas de quem gosto ainda mais (bastante mais). Aliás, a idade e tudo o que por lá passou, só servem para ganhar o meu respeito, independentemente do valor artístico que tem.

Eu até lá ia muito nos primeiros tempos; eu até ia lá ver as exposições de que uma amiga foi guia, e outras. Eu até da papelaria do piso de baixo gostava, e adorava comprar papéis onde depois não escrevia, por os achar tão bonitos. E gostava até daquele jardim no terraço que dá para o lado do Tejo, excelente para tagarelar com as amigas em fins de tarde de tempo ameno.

Gostava, e gosto.
Mas confesso que nos últimos tempos a minha relação com o CCB parece não ser a mesma.
Em Fevereiro tive uma experiência do outro mundo, ao ir visitar a Besphoto.
Recomposta do trauma, andava a pensar que tinha de ir ver a exposição do Berardo. Andava a pensar, mas nem sequer tinha pensado numa data. Aconteceu por acaso, havia tempo, e foi no outro fim de semana.

Não foi nada de comparável com a experiência da Besphoto, mas confesso que foi uma desilusão. Não é traumático, mas não me conquistou, nem perto disso. A parte mais interessante da exposição foi a surpresa de não termos de pagar a entrada, e o pézinho da pessoa que me acompanhava dentro do lago, à saída.
Confesso que estou a ser exagerada. Até lá tem uns Picassos (mas gostei mais dos que vi numa exposição da Gulbenkian, há uns anos), e mais algumas outras coisitas que não desgostei. Mas fiquei desiludida.

Estava até um bocadinho preocupada comigo, por julgar que o mal só podia ser meu, que aquilo devia ser, indiscutivelmente, uma maravilha, mas que eu estava a ficar embrutecida para a arte. Depois, respirei fundo quando ela classificou a coisa como coisa-um-bocadinho-mediocre-do-Berardo. Afinal, não sou só eu.

Até acho que a exposição deve ser visitada. Nestas coisas acho que devemos sempre ver com os nossos olhos. E mesmo quando não ficamos conquistados, acho que ganhamos em ver, em conhecer coisas novas, em expormo-nos a novas correntes, enfim, acho que só há vantagens.

Ah! É que eu até nem sou fã por aí além de arte contemporânea, confesso. Sobretudo no que diz respeito à pintura (mas abro grandes excepções, porque há, de facto, grandes pintores, até nacionais e vivos) e um nadinha (mesmo nadinha) a um certo tipo de escultura e dança. Nas outras áreas das artes até acho que estamos a viver um bom momento.
Mas em compensação adoro outras épocas, tenho uma predileção acentuada pelos impressionistas e perco-me de amores pelo Monet.

Das crianças

Uma prima proclamava aos quatro ventos, ainda há muito pouco tempo, o meu jeito para as crianças, por oposição à total falta de jeito dela, mesmo para a sua própria criança. Há amigas minhas que dizem o mesmo, mas eu acho que não tenho jeito nenhum especial, e que nem é preciso. As crianças são simples, ou gostam ou não gostam, são sinceras. E são também muito engraçadas.

Ora eu, apesar de achar exagero essas apreciações acerca desse jeito, reconheço que não me custa tratar com as crianças, que gosto delas e que, por isso, até se revela fácil entendê-las. Houve uma, no entanto, que durante três dias seguidos me fez a mesma pergunta sem que eu lhe desse uma resposta que ele achasse aceitável, e sem me perguntar a mim mesma que raio tinha dado ao miúdo.

Todos os dias, assim que me via, perguntava tão sorridente quanto ansioso: O teu marido?
E eu, a cada dia mais perplexa, lá lhe respondia que não tinha marido, a que se seguia um: Tens sim!, amúado dele e um virar de costas em jeito de birra.

Ao terceiro dia lá acrescentou à pergunta de sempre: ... o senhôôôre que faz castelos de areia! E aqui percebi, finalmente, a quem ele se referia, e até entendi que na cabeça feita de dualidades de uma criança daquela idade fosse natural esse tipo de construção de realidades. Deixei de teimar com ele e passei a calá-lo, a cada manhã, com um simples: Esta a trabalhar.

A estratégia resultou, e a única coisa que tive de fazer foi repetir este ritual de respostas todas as manhãs até se terem acabado as férias da criança (antes do fim de semana seguinte), sem que lhe fosse possível voltar a posar os olhos em cima do meu marido.

Pois não é que, passado já algum tempo desde as férias, numa esplanada (sim, dei um saltinho a uma esplanada hoje ao fim da tarde para dar os parabéns e um presente de aniversário à mãe dele), quando chega acompanhado da Mãe, a primeira pergunta que me faz é: O teu marido?

Decididamente a criança afeiçoou-se, mas a coisa nem seria má por aí além se à minha resposta de sempre, em que digo que está a trabalhar, com o intuito de acabar a conversa por ali, ele não me tivesse respondido, de sobrancelhas franzidas, mãos na cintura e ar de [muita] censura: E achas bem?! É só ele que trabalha?!

Mas isto é normal?!?!



segunda-feira, 8 de outubro de 2007

"Onde é que andaste?"




Esta pergunta, a par de uma outra (O que é que estiveste a fazer?), não podem ser feitas por uma pessoa específica.
Não podem, é uma forma de dizer. Não devem! Deixam-me fora de mim e com a sensação de que me falta o ar e a liberdade de movimentos. É um trauma, concerteza, mas é assim.
As outras pessoas podem perguntar, não me incomoda nada. Até gosto que algumas perguntem. Há até de quem goste muito de ouvir perguntas deste teor ou parecidas.
Enfim... coisas minhas.


Pois estive a aproveitar estes dias de Outono solarengo.
Estive a brincar com os cães, deitava na erva.
Estive à procura das flores cor de rosa, do Outono, que nascem selvagens e de que tanto gosto.
Estive a deliciar-me com a companhia de uma amiga muito especial de quatro patas e a quem tenho dedicado muito pouco tempo.


Suponho que os as calças sujas de erva, a camisola cheia de palha, o cabelo em desalinho e o cheiro a cavalo com que entrei em casa deviam ter dado uma ideia aproximada.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Meninos de Luz #2

Já não sou a mesma. Já não gosto que uma gripe ou uma amigdalite, ou coisa afim, que me dê febre e leve todo o apetite, sirva para me deixar em casa. Já não gosto de ficar em casa assim.


Fecho-me aqui nas águas-furtadas para deixar mais longe as pessoas, e estar mais perto do céu.

Ouço, por acaso, isto na rádio (e vou carregando no replay um número de vezes a que perdi já a conta), e sinto saudades de Itália (apesar do clip ser rodado em Barcelona), e da Margarida desse tempo, da liberdade, das asas que sentia que tinha e que perdi, do calor das ruas de Roma, dos sustos quando nos perdiamos, das reprimendas sentidas que demos ao Francesco quando ele nos apresentou a segunda rapariga como namorada, e dos risos de caso perdido quando nos apresentou a sexta, em apenas 15 dias, das noites inteiras passadas a comer gelados e a rir na Fontana di Trevi, da comidinha do Georgio em Florença, do frio e das camisolas quentes em Siena, dos serões no hotel com cheiro a mofo e o piano desafinado que nos dava música, ainda assim, durantes horas, do mistério de Veneza, dos cappucinos tomados no quarto com vista para a Baia de S. Marcos e das viagens atribuladas nos vaporetti. Até dos insultos, em português, que a J. gritava aos rapazes que nos perseguiam, julgando nós que eles não nos entendiam, e de eles, no último dia, nos olharem com a maior das calmas e dizer que sempre nos tinham entendido porque falavam francês por viverem em França, mas eram filhos de portugueses.

Saudades de ter horizontes largos e do tempo em que a vida era feita destas coisas simples, do tempo em que quatro amigas dividiam lágrimas e multiplicavam gargalhadas, sem dores nem medos nem preocupações. Saudades... ou nostalgia...


E, enquanto isto, arrumo dezenas de artigos fotócopiados para a tese, e revistas que não quero deitar fora. E deparo-me com uma que já tem três anos. Um exemplar da Egoísta (nunca as compro, oferecem-mas. mas também nunca as deito fora), tem como título Luz.


Abro-a, com uma ligeira inquietação. Lembro-me de um texto que faz parte dela. Lembro-me só deste texto.

Procuro-o e encontro-o. É da Alexandra Quadros. Chama-se "Meninos de Luz".

Respiro fundo antes de o ler. É um daqueles que se cola a nós, que se lê, sente e respira. Daqueles que nos correm nas veias. E eu, que não costumo transcrever textos (nem quando devia, nas notas de rodapé dos trabalhos), não resisto a fazê-lo. Uma segunda vez. Mais sentida do que da primeira, admito. Sim, absolutamente sem dúvida, mais...


Dizem que são as crianças quem escolhe os pais.
Dizem que são pequenos seres de luz que andam pelos céus, a flutuar pelo ar à nossa volta e que observam formas de narizes, avaliam a honestidade dos sorrisos, analisam intenções de cada olhar ou a forma de uma mão, para finalmente dizerem, na sua linguagem mágica e incompreensível: "Este sim, esta não, este talvez me faça crescer".
Eu acredito nisso. E talvez por isso mesmo tenho tanta pena dos homens.
A força de uma criança na barriga é simplesmente o poder da luz a crescer cá dentro. Nós sentimo-la desde o primeiro dia.
Uma mulher sabe quando a luz resolveu escolhê-la.
Fazemos amor muitas vezes.
Mas um dia chega em que aquele acto de amor foi realmente diferente. Por isso damos por nós a chorar. De alegria. Porque sabemos que ela já cá está.
Quando a luz acontece a uma mulher ela percebe que existem sensações inenarráveis. Aprende o prazer de guardar um segredo precioso. O gozo da surpresa dos outros quando ela já sabia há tanto tempo.
Esta luz estica, abana, dá beleza ou abafa-a egoisticamente só para si. Provoca-nos enjôos, embate contra nós ás horas mais disparatadas do dia e da noite, afasta-se suavemente quando pressente que fazemos amor com aquele que ela escolheu para ser seu pai.
Quando uma criança nasce e é colocada sobre a mãe, a pele serve de veículo condutor dessa força que nos electriza mais uma vez e para o resto da vida.
Não é por acaso que as crianças vêem anjos, dizem coisas extraordinárias ou nos confortam em certos momentos como se fossem almas velhas e sabedoras. É que são mesmo.
Eu já perdi uma luz.
E foi assim mesmo.
Como se me apagassem por dentro.
Logo eu, que tenho tanto medo do escuro.



(Com um beijinho, para uma amiga, de todos os dias e todas as circunstâncias)