Enquanto tento concentrar-me nos papéis que tenho à frente mas o que vejo, se fecho os olhos ou se os abro, é a imagem do barco das Berlengas, toca o telemóvel e ainda tenho a tentação de não atender, tamanho é o atraso no trabalho aliado à falta de concentração.
Penso, mas atendo. Afinal, não gostaria que me fizessem o mesmo. Penso, também em dizer-lhe que estou afogada em trabalho - alguns com prazos oficiais - e que lhe ligo para falarmos melhor quando conseguir um bocadinho de tempo. Penso... mas mal consigo abrir a boca tal é a agitação dela.
Faz a queixa geral, de que não telefono, nem escrevo, nem tenho tempo para um almoço, ou um café. Tem razão!
Fá-lo num chilreado de passarinho na Primavera.
Já lhe conheço este estado. Já me deparei com ele muitas vezes. Também sei que desaparece como aparece. Repentino! Não sei se é bom ou mau...
Ainda pensei tentar atropelar-lhe o discurso quase cantado, para fazer um atalho até onde sabia que a conversa ia levar-nos. Pensei perguntar-lhe como é que ele se chamava [desta vez], mas ela estava tão entusiasmada que fui deixando que falasse e esgotasse a energia, enquanto ia arrumando as declarações de colheita que tinha à frente.
Falou, falou muito! Uma conversa onde as palavras eram proferidas muito depressa e entrecortadas por risinhos.
Falou do carro fabuloso que tem, de como é rápido, bonito, do balurdio que custa...
Falou do apartamento espaçoso, divinamente mobililado, na cama enorme, na varanda magnifica com uma vista linda para o Tejo, num sítio excelente.
Falou no trabalho ou, melhor dizendo, no emprego interessante que tem e na carreira promissora. Também percebi que o emprego é interessante porque o vencimento é muito interessante.
Falou nas noites deslumbrantes que têm passado. E, por fim, também falou nele, sim. Disse: E é giro! Tem uns olhos giros...!
Respirei fundo. Dizer-lhe o quê?!
Ainda lhe disse para me falar dele. Estava a referir-me a ele, ao que é, e não ao que faz ou ao que tem.
Queria que ela entendesse, por ela, que o que importa não está à vista, nem se mede, nem se pesa. Não está mesmo!
Que o que ela está é deslumbrada, como, aliás, já esteve outras vezes.
Depois o entusiasmo passa, e o essêncial não está lá.
Ainda tentei fazê-la perceber que...
Desisti depressa. Percebi que não valia a pena. Que ela ia viver, intensamente, mais esta estória até que ela se esgote. E desejei-lhe, em silêncio, que fosse muito feliz enquanto durasse.
Depois, sei que se vai sentir vazia, como das outras vezes. E fiquei a desejar que um dia ela perceba o que lhe faz falta, o que a completa, o que é, de facto, importante. Enfim... fiquei a desejar que um dia se encontre, porque, no fundo, no fundo, é disso que acaba por se tratar.
Desisti porque, na verdade, sei que cada pessoa tem o seu percurso e o seu tempo próprio.