domingo, 30 de outubro de 2005

Oportunidades

Foi a última fotografia que tirei em Milão. Não por achar que valia a pena guardá-la, não que achasse o enquadramento bonito, não que partisse com saudades antecipadas.
Tirei porque sim. Em jeito de conclusão; para a guardar junto com as outras, e os bilhetes do Scala, e dos transportes, alguns tickets de restaurantes, sacos de livrarias, o panfleto do hotel... enfim, o costume!
Para ter a certeza que marcava mesmo o fim da viagem.

Fui porque sim, Não porque queria.
Uma viagem bem ao jeito da C. e da S.
E lá fomos; elas, eu e a J., as quatro. Porque sim!

Lembro-me da chuvinha miúdinha e persitente que nos acompanhou sempre, das galerias Victor Emanuel, da catedral esmagadora, das cadeiras de veludo vermelho do Scala (que imaginava mais grandioso), das muitas livrarias, de alguns restaurantes, de uma cidade enorme e cinzenta, de gente apressada, do trânsito caótico, de muitas lojas de roupa caríssimas e das obrigatórias compras; dos montes de sacos, da bagagem a mais, do quarto de que não gostava.
Lembro-me, depois, do único susto que apanhei com um avião.

Lembro-me, agora que penso nisso, da visita a Santa Maria delle Grazie. Do encerado verde, da camisola de lã, da mochila às costas, e do enfado de quem cumpre quase uma obrigação numa cidade que não me agradava.
Lembro-me dos montes e montes de turistas que os funcionários tentavam ordenar. Tudo para ver o fresco da Última Ceia, pintado pelo Leonardo Da Vinci.
Olhei... e pronto. Estava lá. Um fresco bonitinho (aprendi nesse dia a diferença entre um fresco e um mural). Já podia dizer, numa ocasião que se mostrasse indicada, que sim, que o tinha visto ao vivo, que tinha estado lá. Já estava!

Isto vem tudo para aqui porque a minha companhia principal neste fim-de-semana tem sido o Código Da Vinci.
Livro que não li quando toda a gente o leu, porque sou teimosa. Porque não ia ler um livro que todos andavam a ler!
Estou a ler agora porque mo emprestaram, sem que o tivesse pedido, e... achei que devia lê-lo antes de o devolver.

E agora tenho pena de não ter aproveitado, de não ter olhado para as coisas com olhos de ver. De não ter reparado no que estava lá pintado, nas caras, nas mãos, nas expessões. Independementemente da minha opinião acerca da questão tratada.
Por mais que não me agrade admitir, foi uma viagem de meninas mimadas e um comportamento de menina mimada, que se enfada com o que tem e vira a cara às coisas sem sequer parar para ver o que tem à frente do nariz.

Não tenho a mínina intenção de lá voltar. Mas fiquei a pensar em quantas coisas, mais ou menos importantes - mas evidentes - passam à frente dos nossos olhos e nós nem nos damos ao trabalho de olhar para elas. Às vezes, simplesmente, porque estamos assim um bocadinho enfadadas. É que, às vezes, e em algumas coisas nesta vida, podemos não ter uma segunda oportunidade...

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

T

T: de Tiago, ou de Tiaguinho! O nome do filho pequenino de uma das minhas melhores amigas.
De um bebé reguila, ou menino doce: nunca sei bem o que chamar às crianças entre o 1º e o 2º aniversário. Da criaturinha que trouxe ontem para casa e que se cola a mim. Que me obriga a andar de acordo com os horários dele, a trocar fraldas, a preocupar-me com as suas refeições e a arranjar biberons.
Que me faz rir, e me suja a roupa por andar sempre a querer subir para o meu colo. Que não me deixou trabalhar grande coisa hoje porque não aceita outros colos.

T: de telemóvel. E de como percebi hoje o quanto me faz falta, e dos números indispensáveis que tenho gravados apenas no cartão. Isto tudo porque não suspeitei que uma criança silênciosa possa estar a fazer qualquer coisa tão perfeita como cobrir muito bem todas as partes do telemóvel com creme Nivea.

T: de tempo. Ou da falta dele. Da falta dele para trabalhar, para falar com algumas pessoas, para visitar blogs ou qualquer outra coisa que não seja manter o primeiroT debaixo de olho, brincar com ele (ou tê-lo ao colo, como é o caso!). Isto é :T de tempo bem passado!

terça-feira, 25 de outubro de 2005

(Des)contextos

Na noite de Sábado - a da festa - saí de lá, eu e uma amiga, com o objectivo de, finalmente, regressar a casa e à minha caminha. Para mim, oito horas lá eram o bastante. Para a maioria das pessoas também. Mas alguns resistentes seguiram outros rumos.

Um amigo/colega de trabalho (ou na ordem inversa. não sei bem) também lá estava. Ele e outro colega nosso.
No caminho de regresso toca o telemóvel. Olho para o ecrã e vejo que era ele.

- Mas onde é que andas?! Volta já para trás!

Nem pensar! Estava cansada, queria mesmo ir embora.

-Traidora! Volta já!!! Estás a ouvir?

Pois sim. Claro que não voltava. Entretanto eu ria e a minha amiga também. Áquela hora já se ri de qualquer coisa.

- Se não voltas nunca mais te falo! E nunca mais te ajudo! Nunca mais, ouviste?! Tanto me faz que gostes de números como não! Vais ver...!

-Ai é?! Está bem! Então eu vou contar que tu lês a Surf Portugal em horário de trabalho! Adeus! Até amanhã! Beijinhos!

-Beijinhos?! Beijinhos?! Não te dou beijinhos nenhuns!!! Nem eu, nem ninguém aqui!!!

E desliga-me o telefone na cara. Continuamos a rir, que a noite não estava para outra coisa.
Minutos depois toca o telefone. O mesmo número.

-Sim? O que é que queres? Ah, já sei! É para me dares os beijinhos. Até amanhã!

Mas do outro lado:

- Beijinhos??? Quais beijinhos??? Ah! Vocês...

Tinha passado o telefone ao nosso colega para que ele tentasse convencer-me a voltar para trás. E, claro, a este a conversa dos beijinhos, fora de contexto, pareceu estranha. Tão estranha, que continua a ver as coisas fora do contexto.

Mesmo fora do contexto. Ele mais algumas pessoas a quem, óbviamente, contou a sua versão da história. E lá entra em acção uma brigada a tentar dar "um empurrãozinho". Mas eu não quero "empurrãozinho" nenhum.

E lá se tornou impossível trabalhar com o G., e lá dou um salto para trás de cada vez que ele vai para me passar a mão pelo cabelo ou pelo braço, e lá o evito (dentro do possível), e... não estou a gostar nada disto!

Já ele, parece que gosta. Depois de lhe ter segurado no braço e de lhe dizer que achava desnecessário que me fizesse festas no cabelo. Ele riu e disse que era melhor falarmos. E falámos.
Conclusão de quase duas horas de conversa no parque de estacionamento: Eu não quero. Não posso! Ele termina com um sussurrado: Mas podiamos... Podiamos, Margarida...
Eis como, sem nem saber muito bem como, o trabalho se torna, num ápice, insuportável e se perde um amigo.

sábado, 22 de outubro de 2005

Fim de Semana

Já nem me lembrava bem o que isso era. Depois destas semanas...
Agora as referências começam a voltar, ténues e devagarinho. Mas a voltar.

Coisas boas: chegar a casa, ontem ao fim do dia, e tê-la só para mim. Tomar um banho quente, vestir o pijama e, apesar de trabalhar à noite, fazê-lo ao ritmo que me apeteceu.
Adormecer nas águas-furtadas, ter consciência disso, e deixar-me ficar lá. Acordar sem despertador, tomar um pequeno-almoço demorado, ter o telefone desligado, não haver barulhos nem pessoas em casa, fazer biscoitos e dedicar-me à preguiça.

O fim de dia será bem menos calmo! Uma festa irrecusável (apesar de me apetecer recusar), sabendo, no entanto, que me vou divertir muito! E também estava a precisar disto!

quinta-feira, 20 de outubro de 2005

Primas

Li há algum tempo, nalgum sítio, que primo era o grau de parentesco mais confortável.
Não se escolhem pais, nem filhos, nem irmãos, nem avós, nem sequer tios. Mas os primos escolhem-se. São nossos primos quem nós quisermos, ou quase.

Quando não gostamos da pessoa em causa ignoramos uma origem comum. Fingimos que não sabemos e, de tanto fingirmos, chegamos a acreditar nisso.
O contrário também é verdade. Às vezes somos assaltados por uma muito provável origem comum e, no caso de sentirmos afinidades, lá ganhamos primos.

Algumas dessas vezes lá nos damos ao trabalho de verificar a veracidade desse origem e a família cresce, une-se, toma jeitos de clã, com encontros, almoços, cumplicidades e inter-ajudas. E lá se passeia ao colo a priminha pequena, em 15º grau, que herdou o nome da minha 27ª avó (28ª dela), nas margens do Cávado.
Outras vezes não nos damos a esse trabalho, mas criam-se laços na mesma.

Ontem respondi a um mail de uma prima destas. Noutros tempos teria sido uma carta. Teria outro encanto, mas o efeito é o mesmo.
Primas, mulheres, com idades próximas, com algumas afinidades.
Uma prima faz muita falta. Tem o distanciamento necessário, e a próximidade que precisamos. Faz falta para nos perguntar o que vai acontecendo na nossa vida, faz falta para podermos contar isso a alguém e, à custa disso, tentar ordenar ideias, respirar fundo, ganhar calma. Faz falta, e faz bem.

terça-feira, 18 de outubro de 2005

O anel do meu dedo

Quando foi decidido que teria o meu próprio cavalo ficou decidido que seria uma égua. Um animal calmo, de passeio. Era isso que queria. Depois da adolescência e da sede de emoções fortes era a altura de começar a apreciar a calma e a segurança.

A pessoa que tinha esta que hoje tenho disse-me: É um anel para o seu dedo! Nenhum, mesmo que feito de encomenda, lhe assentará tão bem!

E foi assim mesmo. Amor à primeira vista!
Ela não é baixa, nem calma, nem de passeio. Não é Lusitana nem submissa. É Puro Sangue Inglês, de desporto, altíssima, veloz como o vento, senhora do seu nariz, adormece tarde e dorme toda a manhã. Amiga inseparável; cúmplice.
Quando estou longe é dela que sinto a falta.

Um dia, teimei com ela. Forcei-a. Usei a chibata. Ela não queria andar mais e eu obriguei-a.
Sabia muito bem que estava a força-la, a usar a força. A páginas tantas ela atira-me ao chão.
Consegui soltar os pés dos estribos e senti-me a ser projectada pelo ar. Na queda tive tempo de pensar no que me estava a acontecer; tive a sensação que nunca mais tocava no chão. Uma curiosidade estranha aquela que senti. Sabia bem o perigo que estava a correr.

Finalmente aterrei com as costas no chão. O corpo estendido.
Pareceu-me que tinha passado uma eternidade desde que tinha saltado de cima dela. Abri os olhos e vi a luz do Sol por entre as copas fechadas dos carvalhos.
Não sentia nada nem ouvia nada. Achei que tinha morrido. E não me importei com isso.

Depois percebi que não. Percebi que tinha tido muita sorte e que tinha caído tão bem que não me tinha magoado (na verdade, umas horas depois, estava um bocadinho dorida; mas só isso). Percebi que estava viva. Não me senti aliviada com a constatação. Podia estar morta ou viva. Estava viva, ponto final.

Hoje, quase dois anos depois, ao pensar nisso reparo que podia tirar muitas conclusões.
Podia concluir que não podemos cair na tentação de sujeitar quem gostamos; que mesmo as criaturas que, incontestávelmente, gostam de nós nos podem magoar; ou, simplesmente, que não morremos quando achamos que sim.

terça-feira, 11 de outubro de 2005

Boa ideia!

Boa ideia foi não ter ido trabalhar hoje.
Melhor ideia teria sido ficar por casa. Mas pelo menos resolvi algumas coisinhas pendentes.
E outra boa ideia é ir dormir!Isso sim, e agora!

domingo, 9 de outubro de 2005

4º Semana


Este é o quinto vinho deste ano, aos cinco dias, de viagem da cuba onde nasceu para aquela onde está agora. Depois dele já existem mais três, em diferentes fases. Faltam ainda mais dois.
Já não os conheço bem, já não tenho a idade deles de memória, não me perguntem graus, nem castas, nem coisa nenhuma.

Conheço os primeiros cinco, como me conheço a mim, ou melhor. Melhor, com toda a certeza!
São criaturas minhas. Lembro-me de tudo; o dia em que as uvas chegaram, as horas, ao que sabiam, o grau que tinham, a temperatura. Sei para que cubas foram, sei quantos litros deram, sei quando começaram a dar os primeiros sinais de vida. Sei quando cada um deles começou a ficar morno e a mexer. Sei qual foi o mais rápido, o mais agitado, o mais barulhento - são como as pessoas, cada um com a sua personalidade.
Sei para onde foram mudados, ao fim de quantos dias; conheço as mudanças por que ainda estão a passar. Ainda vou à adega para encostar o ouvido e ouvir os barulhinhos, cada vez mais baixos, que ainda fazem. Ainda passo a mão nas cubas mornas como para afagá-los.
Gosto deles.

Dos outros não me perguntem. São números, valores, parâmetros. São quadros num ecrã.
Sei o que houver a necessidade de saber. Quando há a necessidade. Há análises e medições, há registos.
Se calhar porque não estava cá quando entraram ( e continuo a não estar em permanência); se calhar porque estou cansada; se calhar porque a capacidade para se gostar não é, afinal, ilimitada.

E pronto, depois de uma primeira semana calminha e destas três alucinantes, entre vindimas e viagens, e sem poder distinguir os dias úteis dos fins de semana, estou cansada. Deixei de ter a capacidade para me enternecer com os vinhos novos, deixei até de ter interesse em saber mais do que o que é objectivo e necessário.
Não é que não ande bem disposta, porque até ando - realmente, não me lembro de me sentir triste um único instante, durante este tempo - mas estou esgotada. Porque não se consegue agarrar o mundo todo de uma vez. Só por isso.

Bem sei que esta semana ainda não vai ser tranquila por aqui e que, ainda por cima, até vou ter de sair, mas agora queria só a minha caminha. Mais nada!

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Deveres


- Temos que falar Margarida. Há umas viagenzinhas que vamos ter que marcar. É tudo um bocadinho concentrado, mas tem que ser. Compreende, não compreende? É que precisamos mesmo.

Se calhar não devia compreender nada. E devia importar-me. Pois devia.
Ainda por cima assim, com pouco tempo de antecedência.
Mas não me importo. Não me importo nada.

Depois de os ter levado a mexer na programação do trabalho de 17 pessoas porque tinha que faltar uns dias para a vindima, e de terem feito por causa disso, alterações que me libertaram uma semana inteirinha sem faltas (é verdade que eu precisava de, pelo menos, cinco semanas, mas...); depois de lhes ter dito que ia faltar mais uns dois dias lá mais para o fim do mês e de me dizerem que então iam ver o que podiam fazer, que talvez desse para não considerar faltas... não posso resmungar muito.
Não posso, nem quero! Posso até fingir que estou a ser boazinha, que me disponho a fazer o sacrifício, mas só porque tenho boa vontade. Até posso, mas é mentira. Não me importo nada!

Se há coisa que percebi nos dias que passei lá por baixo foi que gostava de fazer sempre esse tipo de trabalho.
Pode ser cansativo, pode exigir tempo, flexibilidade e até algum tacto.
Mas não é monótono.

Agrada-me mudar de sítio, ir onde não conheço e, melhor ainda, ir onde quase ninguém conhece. Agrada-me falar com pessoas tão diferentes. Agrada-me andar de um lado para o outro, perdermo-nos de vez em quando e rir à conta disso.
Agrada-me, acima de tudo, a sensação de liberdade - ilusória, eu sei. Não estar presa a uma secretária e a uma sala, fazer quilómetros e quilómetros, nos mais variados sentidos, nos mais variados pisos, e até nos mais variados meios de transporte (as moto-quatro em ravinas continuam a assustar-me um bocadinho mas... chegam a lugares fantásticos!). A sensação de estar a descobrir o mundo e, ao mesmo tempo, fora dele. Não ouvir as notícias a não ser de passagem numa qualquer área de serviço de uma auto-estrada. Estar fora.

E chegam à memória as imagens ainda frescas dos bocadinhos de costa alentejana sem casas e sem caminhos e do quanto custou, em alguns casos, descer as falésias para chegar ao mar (sim, não esperem que eu passe perto do mar e fique só a olhar!), e das viagens nas carroçarias das pickups que nos arranjaram a apanhar vento e pó e a rir como tolinhos, e de ter perdido o portátil e de o ter reencontrado, e das roupas sujas e dos almoços fantásticos e de ter falado mais inglês do que português (país estranho este!) e de cair numa cama, à noite, e dormir como uma pedra. E de me ter descoberto mais auto-suficiente!

Pois... eu compreendo. Tem mesmo que ser! Mas só porque sou muito boazinha!

terça-feira, 4 de outubro de 2005

Filha do Mar


Não, não é de mim que estou a falar; nem tão pouco a pensar. Não mesmo.
No meio da vertigem que tem sido a minha vida nos últimos tempos, não resisti e ofereci a mim mesma uma passagem pelo praia ao fim de um dia cheio.

Chegar lá, inspirar profundamente, descer as escadas, tirar os sapatos, fincar os pés na areia para a sentir bem, avançar até a sentir molhada e mais um bocadinho até deixar o mar tocar-me os pés - não está fria - fechar os olhos e ficar ali a ouvi-lo e a senti-lo. Se fosse mais cedo... se tivesse ali um biquini... mas não dava; hoje não.

Não precisava de mais nada.
Gosto dele manso ou bravo, no Verão ou no Inverno, frio ou menos frio, azul, verde ou cinzento.
Sou daquelas pessoas que acha que ele não separa: une!
Preciso dele como de oxigénio. Nada menos.

Leva-me os problemas, enche-me a alma, dá-me paz, diverte-me com as ondas ( apesar de dois ou três sustos, é certo), equilibra-me.
Lembrei-me de uma telenovela, que nem costumava ver (há vários anos que perdi esse hábito). Não da telenovela, mas do título que achava lindo: Filha do Mar.
Demasiado bonito para uma telenovela, sempre achei. E continuo a achar.

Fiquei embalada pelo som das ondas e nem sei mais porquê, a pensar que alguém pode nascer assim: filha do mar.
Não eu! Mas alguém pode nascer assim, com uma ligação muito mais forte; verdadeiramente forte, umbilical. E viver desse modo.
É que hoje estou assim, com a alma cheia, sem pedir mais nada da vida!



Eu sei que é um post estranho. Faz parte daquela fase de "irracionalidades", para a qual já tinha deixado aviso.

sábado, 1 de outubro de 2005

Vida

Há coisas que nos marcam. Que influênciam a forma como encaramos o que nos rodeia. Algumas são simples. Mas, ainda assim, difíceis de partilhar.

Ando ocupada com a vindima. Embrenhada é o termo mais exacto.
Levo o tempo à volta destas coisas. Desde que me levanto até que me deito. Não sei o que se passa pelo mundo. Não imagino sequer. Não sei se há mais tufões, se há mais desemprego, se o petróleo subiu novamente...
O meu mundo é outro agora: as uvas, o vinho.

Não tenho tempo para ir às vinhas (com muita pena minha) mas acompanho as uvas desde que chegam às adegas.
Vejo-as, "roubo" bagos aqui e ali, meço o grau de açucares.
Acompanha-as enquanto são esmagadas, asseguro-me que não seguem folhas ou uvas em mau estado.
Transformam-se em sumo. Doce, de cor quente, que corre formando um caudal forte para dentro as cubas. Bebo-o e sorrio sempre. Como quem sorri a uma criança pequena.

Vou andando à volta das cubas ansiosa por detectar sinais de vida. De vida, sim. É sabido que o vinho é um organismo vivo. Aqui começa a gestação dele.
Prefiro tocar-lhe, em vez de usar o termómetro, para perceber quando a temperatura começa a elevar-se um bocadinho. E olho uma vez, e outra, e outra... até perceber um indício de um movimento leve.
Então, nalgum momento, isso acontece: a temperatura sobe, ele mexe-se. E a temperatura sobe mais e ele mexe-se mais. Fica quente; quente como a cor que tem. E ouve-se, num som surdo, profundo, vindo lá das origens dos tempos.
E durante uns dias mexe-se, dá saltos, borbulha, ruge num som abafado mas forte, grave e tumultuoso, expulsa de si tudo o que não lhe pertence, define cor, altera os cheiros, define-se, diferencia-se: nasce!

A mim, cabe-me acompanhá-lo, assegurar que as condições não lhe faltam, que tem oxigénio suficiente, que a temperatura não sobe demais e até que não há barulhos a incomodá-lo.
E disfrutar do seu crescimento. Inquietar-me quando não se comporta como era esperado, emocionar-me com a sua evolução, tocar-lhe e sentir o seu calor, ficar em silêncio a ouvi-lo, enternecer-me e sorrir quando nos surpreende, quando vence mais uma etapa e chegar a chorar de orgulho por ele, por essa vida nova que está um bocadinho dependente de mim.
Passados uns dias tudo acalmará, seguirá sózinho, deixará de ser mosto para ser vinho. Nessa altura será ele a seguir o seu próprio caminho, independente, senhor de si. Por agora está aqui, nas minhas mãos, a nascer.