Já não sou a mesma. Já não gosto que uma gripe ou uma amigdalite, ou coisa afim, que me dê febre e leve todo o apetite, sirva para me deixar em casa. Já não gosto de ficar em casa assim.
Fecho-me aqui nas águas-furtadas para deixar mais longe as pessoas, e estar mais perto do céu.
Ouço, por acaso, isto na rádio (e vou carregando no replay um número de vezes a que perdi já a conta), e sinto saudades de Itália (apesar do clip ser rodado em Barcelona), e da Margarida desse tempo, da liberdade, das asas que sentia que tinha e que perdi, do calor das ruas de Roma, dos sustos quando nos perdiamos, das reprimendas sentidas que demos ao Francesco quando ele nos apresentou a segunda rapariga como namorada, e dos risos de caso perdido quando nos apresentou a sexta, em apenas 15 dias, das noites inteiras passadas a comer gelados e a rir na Fontana di Trevi, da comidinha do Georgio em Florença, do frio e das camisolas quentes em Siena, dos serões no hotel com cheiro a mofo e o piano desafinado que nos dava música, ainda assim, durantes horas, do mistério de Veneza, dos cappucinos tomados no quarto com vista para a Baia de S. Marcos e das viagens atribuladas nos vaporetti. Até dos insultos, em português, que a J. gritava aos rapazes que nos perseguiam, julgando nós que eles não nos entendiam, e de eles, no último dia, nos olharem com a maior das calmas e dizer que sempre nos tinham entendido porque falavam francês por viverem em França, mas eram filhos de portugueses.
Saudades de ter horizontes largos e do tempo em que a vida era feita destas coisas simples, do tempo em que quatro amigas dividiam lágrimas e multiplicavam gargalhadas, sem dores nem medos nem preocupações. Saudades... ou nostalgia...
E, enquanto isto, arrumo dezenas de artigos fotócopiados para a tese, e revistas que não quero deitar fora. E deparo-me com uma que já tem três anos. Um exemplar da Egoísta (nunca as compro, oferecem-mas. mas também nunca as deito fora), tem como título Luz.
Abro-a, com uma ligeira inquietação. Lembro-me de um texto que faz parte dela. Lembro-me só deste texto.
Procuro-o e encontro-o. É da Alexandra Quadros. Chama-se "Meninos de Luz".
Respiro fundo antes de o ler. É um daqueles que se cola a nós, que se lê, sente e respira. Daqueles que nos correm nas veias. E eu, que não costumo transcrever textos (nem quando devia, nas notas de rodapé dos trabalhos), não resisto a fazê-lo. Uma segunda vez. Mais sentida do que da primeira, admito. Sim, absolutamente sem dúvida, mais...
Dizem que são as crianças quem escolhe os pais.
Dizem que são pequenos seres de luz que andam pelos céus, a flutuar pelo ar à nossa volta e que observam formas de narizes, avaliam a honestidade dos sorrisos, analisam intenções de cada olhar ou a forma de uma mão, para finalmente dizerem, na sua linguagem mágica e incompreensível: "Este sim, esta não, este talvez me faça crescer".
Eu acredito nisso. E talvez por isso mesmo tenho tanta pena dos homens.
A força de uma criança na barriga é simplesmente o poder da luz a crescer cá dentro. Nós sentimo-la desde o primeiro dia.
Uma mulher sabe quando a luz resolveu escolhê-la.
Fazemos amor muitas vezes.
Mas um dia chega em que aquele acto de amor foi realmente diferente. Por isso damos por nós a chorar. De alegria. Porque sabemos que ela já cá está.
Quando a luz acontece a uma mulher ela percebe que existem sensações inenarráveis. Aprende o prazer de guardar um segredo precioso. O gozo da surpresa dos outros quando ela já sabia há tanto tempo.
Esta luz estica, abana, dá beleza ou abafa-a egoisticamente só para si. Provoca-nos enjôos, embate contra nós ás horas mais disparatadas do dia e da noite, afasta-se suavemente quando pressente que fazemos amor com aquele que ela escolheu para ser seu pai.
Quando uma criança nasce e é colocada sobre a mãe, a pele serve de veículo condutor dessa força que nos electriza mais uma vez e para o resto da vida.
Não é por acaso que as crianças vêem anjos, dizem coisas extraordinárias ou nos confortam em certos momentos como se fossem almas velhas e sabedoras. É que são mesmo.
Eu já perdi uma luz.
E foi assim mesmo.
Como se me apagassem por dentro.
Logo eu, que tenho tanto medo do escuro.
(Com um beijinho, para uma amiga, de todos os dias e todas as circunstâncias)
7 comentários:
hum, tristemente é algo que acontece com quase todas as mulheres. Parece incrível ter escrito isto mas é mesmo, de todas as pessoas que conheço bem, acho que só com uma é que não aconteceu...Comigo já, duas vezes. Acontece também que há muita coisa que nos apaga a luz, muita, tanta e tantas vezes (ou a uns mais do que a outros). Talvez se torne mas fácil de acender, com a prática da coisa.
Bjs (não era para mim, acho, mas respondo na mesma, iluminadíssima pelas tuas fugazes aparências na blogosfera).
Difícil ter o que dizer...
Bj
este texto é tão bonito, e tão bonita a vivência, apesar de tudo. "luz" é de facto uma palavra de eleição para nos referirmos a uma criança.
E "grande" para quem se levanta e segue sem medo depois de uma reviravolta de sombra assim.
o maior beijinho vai sem dúvida para ti, Margarida. E muito obrigada!
Mas essas luzes, já percebi, não se apagam nunca!!! Nunca!!!
Respondo-te como a Clara, mas convencida que desta vez era mesmo para mim, iluminadíssima pelas tuas passagens pela blogosfera e pela tua presença luminosíssima na minha vida.
Soltas-me as lágrimas mas continuas a multiplicar-me os sorrisos.
E como diz a (o?) Daqui, apesar do drama, é uma vivência muito bonita, mágica.
Adoro-te tanto miúda!!!
Muitos beijos, cheios de luz!
Catarina
Alguns dos teus posts deixam-me sem fala;este é um deles.
Beijo grande
O texto é muito bonito e bem verdade. É uma alegria e uma angústia que despertam em nós.
beijinhos
que texto lindo Margarida! Tocou-me muito, muito mesmo!
Um beijinho muito Grande
Mocas
Enviar um comentário