sábado, 5 de novembro de 2005

Defesas



O tipo tem alguma capacidade para subverter a realidade. Está a jogar com o efeito espelho. Diz-me que sou como ele para me desviar a atenção. Isto agrada-me, apesar de me assustar um bocadinho.

- Está enganada. Já vi que gosta de fazer juízos precipitados, esse é o primeiro passo para errar. Pelo contrário, sou um solitário. Considero que a amizade é um bem demasiado precioso para se dar a qualquer pessoa. Não falo da minha vida com pessoas a não ser que elas mereçam a minha total confiança. A confiança é como a intimidade, demora anos a cimentar e a fortalecer e pode cair por terra com uma única indiscrisção. Já o mesmo não deve acontecer consigo. Deve ser do género de ter muitos amigos, ser muito popular. Vê-se logo que gosta de seduzir, conquistar, usar e depois, quando está farta, desembainha a espada e corta a cabeça a um pobre mortal sem dó nem piedade.

Fico calada, sem saber o que responder. Se eu lhe dou troco, estou a dar-lhe crédito e a admitir que tem razão. Mas o pior é que ele tem mesmo. Cortei a cabeça ao Tiago numa conversa de cinco minutos e agora só me quero ver livre dele. Um dia destes farto-me de ter um caso com o Luís e corto-lhe a cabeça com a mesma facilidade. Já fiz isto demasiadas vezes a demasiados homens na minha vida. É evidente que está a fazer bluff, mas como todos os grandes jogadores, ele sabe que o bluff é uma táctica falível mas indispensável em qualquer jogo. E desta vez acertou.

- E você, nunca cortou a cabeça a ninguém?

- Não. Só quando pressinto que vão tentar cortar a minha. Nessa altura antecipo-me. Mas é um reflexo normal, não acha?

- E já lhe cortaram a cabeça?

- Claro que sim. Aprendi à minha custa. Doeu um bocado, mas desenvolvi algum poder de antecipação.

- Para quê?

- Para cortar a do adversário. (*)


Ando a ler o que me atiram para a frente.
Este livro... não seria minha companhia por minha escolha.
É daqueles em que tentamos, a todo o custo, não encontrar afinidades com as personagens. Antes o contrário, procuro demarcar-me.

Não tenho nada a ver com a protagonista! Nada! Seja no que fôr!
A única semelhança é que a faculdade onde ela teria estudado, é a minha.

Mas uma coisa é certa, e deixou-me a pensar: eu corto cabeças.
Cortei ao V. porque não gostava dele; tinha de ser.
Mas cortei mais. Por outros motivos. Porque na eminência de um desfecho preferi antecipar-me e ser eu a cortar a cabeça. Dói menos!

Num outro caso, não cortei sózinha. Nesse caso conseguimos cortar os dois, ao mesmo tempo. Acho até, que cortámos a cabeça a nós próprios, em simultâneo. Aqueles anos de cumplicidades deram os seus frutos; tinha de ser em simultâneo!

E não consigo deixar de ter isto presente. O medo de sofrer leva-me sempre, a dar um passo à frente, a desembainhar a espada e, num golpe rápido e seco, de olhos fechados, cortar uma cabeça. E a ficar a chorar depois. Porque se sofre, na mesma! Mas eu quero acreditar que dói menos assim! Preciso de acreditar!

Se tenho a certeza, que é isso que me espera, que a minha cabeça vai ser cortada, então, sustenho a respiração e antecipo-me!


(*) Margarida Rebelo Pinto, Não há coincidência, Lisboa, 2000, pp. 54-55


12 comentários:

Sara MM disse...

Nunca tinha visto as coisas desssa maneira... mas agora que vejo, percebo que é mesmo assim, é mesmo isso, é mesmo verdade! E percebo que já me aconteceram as duas coisas - cortar cabeças e cortarem a minha - mas passo a poder destingui-las e compreender melhor o dia da chacina..

BJs

gracinha, a artista do burlesco disse...

Força... antes os outros que tu... por outro lado, nao acredito que tenhas MESMO alguma coisa a ver com alguma personagem desse livro. :-)
Era só para te dizer, Margarida, que gostei muito do teu post anterior.
Um beijo

Anónimo disse...

Ainda bem que não perdeste um amigo.
Gosto do texto!
Também sempre preferi cortar cabeças do que deixar cortarem a minha.:)
Beijinhos

Clara disse...

Ui... deve ser da 1ª vez q fico sem palavras...
Bjos

kikas disse...

Ao ler o teu post (a parte que pertence a ti, claro!) revi a minha melhor amiga tal e qual como tu...o poder de antecipação sempre presente, o cortar cabeças sempre que for necessário ou apenas porque são um atentado à sua racionalização como pessoa...hoje resolveu parar a espada a tempo e parece-me muito feliz, este namoro pode não dar nada mas está a dar uma oportunidade não só à outra pessoa mas acima de tudo a ela...espero que vivas o mesmo e que consigas agarrar o momento...por vezes temos de arriscar!
beijocas grandes
kikas

amiguita disse...

E se ele não te ia cortar cabeça nenhuma?

Bjs Tânia

Anónimo disse...

Ai,ai,ai! Margarida Rebelo Pinto? Esta Margarida só pode estar mesmo mal. isso não é leitura nem para cabeleireiro!! À parte isso, este post exige uma reflexão mais profunda (depois envio por mail), mas lembra-te que por vezes somos nós (quase inconscientemente) que repelimos os outros, que assim se vêem forcados a "sacrificar-nos", por não verem alternativas. Será assim? Um abraço da Guerreira (para apagar um pouco dessa angústia).

39 disse...

Cada um reage da sua forma... Prefiro arriscar... em tudo!

Beijinhos, muitos, muitos

Rui disse...

Nunca fui capaz de medidas extremas. Sou mais de desatar amarras e deixar o barco ao sabor da corrente. Acho que assim lhe deixo a hipotese de voltar ao porto. Uma cabeça cortada não volta a crescer.

maria disse...

eu acho essa literatura muito light, boa para um domingo à tarde de ressaca, mas percebo bem a história de cortar as cabeças...eu sou mais de jogar na antecipação...ou seja, eu n corto cabeças, mas não lhes dou o devido valor quando as tenho e faço tudo e mais alguma coisa para as afastar (sem em dar conta) e depois...bem depois ainda n percebi se me doí ter perdido, se me doí por despeito...eu sei que é mau mas é o que sinto...
De resto a única vez que "joguei limpo", o outro alguém jogou à defesa..acho eu...

Mocas disse...

"Cortar cabeças" é uma defesa como qualquer outra...e tb é natural que tenhamos medo de sofrer...o pior é quando sofremos por antecipação e fazemos "rolar cabeças inocentes". Mas o Ser Humano é assim mesmo, não é?

Beijinho
Mocas

Mocas disse...

HA...e lê lá a M.R. Pinto, que as charopadas leves são fixes para relaxar...olha, eu quando tenho sono, até o catálogo da La Redoute e os folhetos do Continente "leio", de perninha estendida no sofá...