domingo, 8 de outubro de 2006

Coisas da alma


Não se pode ter muitos amigos. Mesmo que se queira, mesmo que se conheçam pessoas de quem apetece ser amiga, não se pode ter muitos amigos. Ou melhor: nunca se pode ser bom amigo de muitas pessoas. Ou melhor: amigo. A preocupação da alma e a ocupação do espaço, o tempo que se pode passar e a atenção que se pode dar - todas estas coisas são finitas e têm de ser partilhadas. Não chegam para mais de um, dois, três, quatro, cinco amigos. É preciso saber partilhar o que temos com eles e não se pode dividir uma coisa já de si pequena (nós) por muitas pessoas.

Os amigos, como acontece com os amantes, também têm de ser escolhidos. Pode custar-nos não ter tempo nem vida para ser amigo de alguém de quem se gosta, mas esse é um dos custos da amizade. O que é bom sai caro. A tendência automática é para ter o um máximo de amigos ou mesmo ser amigo de toda a gente. Trata-se de uma espécie de promiscuidade, para não dizer a pior. Não se pode ser amigo de todas as pessoas de que se gosta. (...)

A amizade vale mais do que a razão, o senso comum, o espírito crítico e tudo o mais que tantas vezes justifica a conversação, o convívio e a traição. A amizade tem de ser uma coisa à parte, onde a razão não conta. Ter um amigo tem de ser como "ter uma certeza". Num mundo onde certezas, como é óbvio, não há.

Para os amigalhaços, que estão para a "amizade livre" como os hippies para o "amor livre", um amigo não é mais que um ponto útil numa rede de relações. É um "contacto". É um capital. Ser amigo sem esforço, sem sacrifício, é ser amigo sem amizade. Gostar das pessoas é fácil. Ser amigo delas não é. Mas as coisas que valem a pena não podem deixar de ter a pena que valem. É pena não se poder ser amigo de toda a gente, mas um só amigo vale mais do que toda a gente. Porquê? Sei lá. Mas vale.


O texto não é meu, como é óbvio. É do Miguel Esteves Cardoso. Do primeiro, de muitos livros dele que li, de enfiada, ainda era eu menina de colégio.
Voltei a pegar-lhe durante os primeiros dias da semana que agora acabou, enquanto estava de cama com uma amigdalite.
Agora, acabada de regressar de um fim-de-semana, inesperado e crescidinho, em casa de uns amigos, não resisti a pegar-lhe. Porque mo inspirou o Peter, que conheci nessa mesma casa e de quem não sou amiga, nem serei, (nos últimos meses aprendi a resguardar-me com a justificação, vaga, politicamente correcta, e verdadeiramente real, de uma indisponibilidade emocional), mas que compreendeu que mesmo que me risse perdidamente com as anedotas, que dançasse toda a noite, que me tivesse divertido com o tiro ao alvo, ... preferia a cadeira da varanda, especialmente se estivesse sózinha, e que entende, como eu, que não há mal em nos sentirmos sós, no meio de muita gente porque raramente há alguém com a chave da nossa alma. Porque mo inspirou a minha própria alma, que... enfim... Porque sim.
Porque sou assim nos afectos, porque não aceito dar aos outros pedacinhos demasiado insignificantes de mim, porque quando gosto, gosto com a alma toda, todos os dias a todas as horas, porque também não aceito que essas pessoas me ofereçam apenas restos de si, que sobraram de banquetes com outros amigos, porque me sinto assim, porque me apetece dizê-lo, e não sei, ou não consigo agora, dizer melhor.

18 comentários:

Jolie disse...

O texto que precisava de ler.

Obrigada!

Beijos.

Sara MM disse...

puxa!!!!!

e não é que é verdade verdadinha!???!

mas acontece instintivamente a quem sabe ser Amigo (com letra gd).... eu acho!

Bjss

reborn disse...

Vou contar-te um segredo, o teu texto tem mais qualidade que o do livro :)
Beijos **************

Smas disse...

Tem tanto de bonito como de verdade.
Também gostei muito do teu texto.
Bjs

Anónimo disse...

Bom texto! Gostei.

gralha disse...

Caramba, como te compreendo. E das melhores coisas que a idade traz é já não termos de justificar por que é somos (ou não) amigos destes e daqueles. A amizade, além do mais, refina com o tempo... Como o vinho, não é?

Beijinhos

Ana Rangel disse...

Gostei tanto... :)

(espero que estejas melhor dessa amigdalite!)

Clara disse...

Estranhamente, concordo com o MEC nesta. É verdade sim, mas tem a ver (digo eu) com duas coisas: a energia emocional que cada um tem para dispender com os outros e o tempo. Porque sem longas conversas, sem longos mails (ou cartas), sem tempo para ouvir é impossível ser amigo de alguém. Obrigada por seres minha amiga!!!!
Bjs, M. (sim, eras tu).
E espero q essa amigdalite já tenha passado.

Xuinha Foguetão disse...

É quase um tudo ou nada!

Gostei!

Beijocas grandes

Rui disse...

Para mim os amigos nunca são demais. Abaixo as quotas. Basta conseguir ser. A sério, claro.

Ana P. disse...

Miguel Esteves Cardoso, e os seus textos, hilariantes...

beijos

Margarida Atheling disse...

Clara: Sou sim, sou muito tua amiga! E não tens nada a agradecer. Tenho muita honra nisso. Também gosto muito de te contar entre as minhas amigas! Muito mesmo! :)

Catarina Agostinho disse...

CONCORDO PLENAMENTE, UM POST BONITO!
BEIJOKAS
CATARINA E JOÃO

Sara MM disse...

BJss!
.. espero que estejas bem... e feliz!

Miguel disse...

Fizeste -me lembrar o que cantava o Roberto Carlos "Eu quero ter um milhão de amigos".

Nada exagerado o senhor...

Estando de acordo com o o teor do que escreveste, apenas me questiono sobre o limite. Quantos? 1, 6, 10, 40, incluindo o Roberto Carlos "himself"?
Não existe gente com mais amigos (verdadeiros) do que outros? Porquê? Até onde é possível? !Querendo exclusividades não estamos a ser egoístas e por consequencia pouco amigos? Não usaremos do coração tal como do cérebro, apenas uma infima parte da sua capacidade?
1 Beijo (é bom voltar e ver-te em forma)

João Mãos de Tesoura disse...

Concordo em pleno com o MEC. Contudo, a amizade de que ele falava é a que não tem interesses. A amizade de que falas, essa, está cheia deles. Um amor tem direitos e deveres, uma amizade não!
Bjs e bfds

Anónimo disse...

Margarida,
Arrepiei-me com o teu último paragrafo, porque também é assim que sou.
Um beijinho,
Emma

Anónimo disse...

Margarida,
Arrepiei-me com o teu último paragrafo, porque também é assim que sou.
Um beijinho,
Emma