quarta-feira, 30 de julho de 2008

Viagem



O carro deslizava apressado em direcção a norte. Por vezes tenho a sensação de que para o carro estas viagens são já rotina. Mas talvez não sejam.

Eu ainda me choco entre o querer - ou precisar- encontrar rotinas neste modo de vida, e entre o querer negá-las, impedir que se instalem com esse carácter. Aceitar alguma coisa como rotina é dar-lhe um carácter de longevidade no tempo, de inalterabilidade, com a qual não posso lidar. Não estas que fazem agora a nossa vida.
Estas não posso.
Preciso de dar-lhes o carácter de transitório. Tão transitório quanto possível. Passageiro apenas.
Porque preciso de rotinas, nossas. De espaço, nosso. De vida, nossa.
Tempo e coisas divididas entre casa dos pais e dos sogros. Vida dividida e apertada em malas de viagens que se fazem e desfazem duas vezes por semana.
A nossa casa à espera. Planos adiados e, algumas vezes, indefinidos. A barriga cada dia maior. Os movimentos, dentro dela, cada vez mais fortes, telúricos, já visíveis.

Para trás ficavam, como sempre, nos últimos meses, por mais uns dias, a cadela, inseparável até aqui, a casa onde se cresceu, a égua, as árvores, as flores que já não rego e que evito espreitar para não sentir mais vivo o abandono a que as votei, o cheiro do feno aquecido do Sol. Ficavam também a consulta, as compras no Ikea e as filas intermináveis, e a descoberta de como esta barriga nos pode ajudar a sair desses aglomerados de gente e confusão.
Para trás ficavam planos que se arrastavam indefinidos há tempo, mas surge uma nova realidade. Menos fácil do que se esperava, mas mais clara e definida e, por isso, melhor, apesar de tudo.
Preciso de certezas, de rumo certo, de um caminho a percorrer.

Desta vez não adormeço. Desta vez falamos durante toda a viagem.
Ele, segura-me a mão, a tempos, enquanto guia, e isso ajuda.
Ele segura-me, simplesmente.

Para-se junto ao mosteiro. É tarde já. Passagem de um dia para o outro. A noite fresca. Os cafés fechados. O cheiro dos plátanos. O silêncio. As mangas compridas do casaso dele a cairem-me sobre as mãos e a protegerem-me da brisa da noite. O edifício, enorme, sólido, senhor do tempo e da memória, e nós, os dois (os três), apenas, e os nossos passos lentos, cadenciados e sincrónicos, à volta dele. A nossa pequenez junto às portas, as pontas dos nossos dedos a tactearem os sulcos deixados nas suas pedras há mais de seiscentos anos já. Santa Maria da Vitória.
Desta vez não soavam fados nas esplanadas, mas era igualmente bom.
Que afinal devemos sempre voltar aos sítios onde nos sentimos bem.

Depois, no final da viagem, no final de tudo, o quarto e a porta que se fecha, por fim. Não o que eu queria, não como queria. Mas fecha-se; finalmente.
Porque a vida a dois é, afinal, tão mais simples do que tudo o resto. Tão mais compensadora. Tão mais forte.
Porque a vida pode caber apenas entre quatro paredes, e os embates e os desgastes, quotidianos, constantes e variados, vêm de fora, sempre.

9 comentários:

Clara disse...

Hum. Não posso concordar (mas porque não escreves mais rapariga, tu escreves tão clara e limpidamente). Muitos dos embates não vêm de fora mas de coisas que guardamos dentro, mal resolvidas (sim, se calhar já vieram de fora há muito tempo).
Achas mais simples? (para mim é tão mais complicada).

Margarida Atheling disse...

Simples não será, claro. Exige muito das duas partes. Mas a verdade é que isso é que tem corrido bem, e que é o cerne que procuro proteger (antes de outras coisas que também me são mesmo vitais até, acho) e de onde me vem equilibrio e compensação(não o "dois" apenas até, mas o "três"). E neste momento os embates têm vindo todos de fora.


Bom... alguns vêm de dentro também, como sabes. Mas é como dizes, uma parte dessas coisas que julgamos vir de fora, vieram de dentro há muito tempo mesmo. Tanto que julgamos intrinsecas (e algumas são-no mesmo!).

(Escrevo clara e limpidamente?! Isso é como tu escreves, minha querida. Eu tenho a sensação oposta, de que é tudo um emaranhado tão grande que é até também por isso que escrevo menos).

Marcia disse...

Gostei tanto de ler este texto!!

gralha disse...

Acho maravilhoso por começares por investir nos dois, porque o terceiro elemento vai precisar tanto desse alicerce!

(e espero que a vossa casinha fique pronta em breve)

beijinhos

Margarida Atheling disse...

Vês, clara?!
A limpidez de escrita não parece ser mesmo comigo!
Afinal, no comentário acabei por dizer exactamente o contrário do que quera (resultado de estar a prestar atenção a outra coisa, também é verdade).
O que queria dizer era que, realmente, há coisas que julgamos vir de dentro mas que, na verdade, vieram de fora há muito tempo. Daí julgramos que são intrinsecas.

Mas lá que existem coisas que são mesmo inatas e fazem parte de nós, e que essas coisas podem criar incompatibilidades inultrapassaveis (e afinidades também), é um facto incontornável.
Mas não era disso que estava a falar agora, como sabes.
Ainda assim, quando essas questões, mesmo da natureza e personalidade das pessoas, é O problema; ainda assim, neste caso, considero que é um problema vindo de fora, porque é exterior ao núcelo que me interessa mesmo salvaguardar.

Enfim... parece uma conversa sem nexo, mas acho que tu a entendes.


Psipages: obrigada!

Gralha: Também acho que sim. Que o terceiro elemento vai precisar muito desse alicerce. Acho que é fundamental. Para mais na actual situação.

tomodoro disse...

Porque é que esta altura é de tantas mudanças? Tudo muda. E tudo ao mesmo tempo. Haja capacidade para as gerir... É um turbilhão e num barco parecido com o teu, só espero ter capacidade de lidar com tudo e sairmos ilesos.

Mary disse...

É tão bom mudar, é tão bom evoluir para melhor...e é isso que te está acontecer.

Gostei deste teu texto, como dizes,que é tudo um amaranhado de palavras...talvez seja...mas mesmo assim lindo de se ler, é o que sentes, e está aqui com as tuas letras todas.

Beijocas
Isa

O Atelier da Imaginação disse...

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Até já

S. C. R. disse...

Adorei este texto.
Simples e honesto.
Desejo-te as maiores felicidades.
Para os três. Tudo vai correr bem.
basta acreditar.

Um beijinho