terça-feira, 22 de julho de 2008

Clarinete


O meu avô J. toca [ainda] clarinete. Conhece os compositores, chegou a ensinar, aprecia opera.
Era eu menina pequena, que já andava pelo meu pé, mas ainda pedia colo, de tranças claras e compridas, onde os cabelos se soltavam, no final, a denunciar os caracóis largos que na altura ainda tinha; e ele levava-me para esses encontros.

As memórias são já vagas. Muito vagas. O cheiro, acho que da madeira, do salão antigo, a compenetração de alguns adultos e de meninos bem mais crescidos do que eu.
Há sempre alguma solenidade na música, quase uma reverência que nos invade, não sei bem se pelos ouvidos se também pelo ar que se respira quando nos deixamos invadir por ela.

Nunca, para desgosto dele, me deixei domar pelo rigor das pautas.
Gostava dos sons, da melodia, da harmonia, dos sentimentos que a música fazia adivinhar apenas, a uma menina que ainda tinha vivido pouco para os reconhecer. Gostava que ela tomasse conta de mim e de me deixar levar.
Gostava, mas nunca aprendi a tocar nenhum instrumento a sério.
As pautas... sempre as pautas. Não gostava de as ler. E apesar de me gabarem as mãos de dedos longos para pianista, o pouco que toquei em piano foi sempre mais por intuição do que por conhecimento de facto. E foi bem pouco.

Depois a vida enche-nos de solicitações e o tempo parece que nos é roubado, sem nem sabermos como. Há coisas que, simplesmente, vão ficando longe e se esfumam do nosso dia-a-dia.
Há tantos anos que não sou essa menina. Tantos quanto o mostram a fotografia que alguém tirou, e que existe em casa dos meus avós, do meu avô, muito mais novo, a ensinar um rapazito que nem sei quem era e de eu estar, de facto, lá, com as tais tranças, pequenina mas com ar de respeito.

Voltei a ouvir Mozart, mais por esta criança, confesso. O que não deixa de ser um motivo tão ou mais válido do que qualquer outro.
Ela agradece com pequenos toques enquanto lhe ofereço isto. E eu agradeço-lhe a ela a possibilidade de, longe no espaço e no tempo, fechar os olhos e estar lá de novo, e ser aquela menina pequenina. Ser aquela menina pequenina e tê-la a ela.
E à vida, ter estas memórias que me seguram e dão identidade, no meio de tudo o que, de avesso, surge.
Estar lá, lá longe de todas as coisas complicadas da vida.
Há momentos assim, minutos, que nos sustentam.

5 comentários:

tomodoro disse...

:o)

Mesmo...

florbola disse...

Gosto tanto de Mozart...
: )

Alecrim disse...

Acho que mesmo que não escrevas durante 20 anos vou conservar este link, porque tu, quando escreves!...

gralha disse...

Isto de nos tornarmos mães é mesmo uma viagem constante à nossa infância e às nossas recordações :)

Tenho de pegar nos meus CDs de Mozart que andam para lá abandonados...

beijinhos

Luna disse...

ouve mozart e td do genero nessa gravidez, vais ver que vai ser mto util depois bebecas nascer.
eu ouvi mta musica na gravidez do Migas ele adora musica
bjcas
Luna