
O carro deslizava apressado em direcção a norte. Por vezes tenho a sensação de que para o carro estas viagens são já rotina. Mas talvez não sejam.
Eu ainda me choco entre o querer - ou precisar- encontrar rotinas neste modo de vida, e entre o querer negá-las, impedir que se instalem com esse carácter. Aceitar alguma coisa como rotina é dar-lhe um carácter de longevidade no tempo, de inalterabilidade, com a qual não posso lidar. Não estas que fazem agora a nossa vida.
Estas não posso.
Estas não posso.
Preciso de dar-lhes o carácter de transitório. Tão transitório quanto possível. Passageiro apenas.
Porque preciso de rotinas, nossas. De espaço, nosso. De vida, nossa.
Porque preciso de rotinas, nossas. De espaço, nosso. De vida, nossa.
Tempo e coisas divididas entre casa dos pais e dos sogros. Vida dividida e apertada em malas de viagens que se fazem e desfazem duas vezes por semana.
A nossa casa à espera. Planos adiados e, algumas vezes, indefinidos. A barriga cada dia maior. Os movimentos, dentro dela, cada vez mais fortes, telúricos, já visíveis.
Para trás ficavam, como sempre, nos últimos meses, por mais uns dias, a cadela, inseparável até aqui, a casa onde se cresceu, a égua, as árvores, as flores que já não rego e que evito espreitar para não sentir mais vivo o abandono a que as votei, o cheiro do feno aquecido do Sol. Ficavam também a consulta, as compras no Ikea e as filas intermináveis, e a descoberta de como esta barriga nos pode ajudar a sair desses aglomerados de gente e confusão.
Para trás ficavam planos que se arrastavam indefinidos há tempo, mas surge uma nova realidade. Menos fácil do que se esperava, mas mais clara e definida e, por isso, melhor, apesar de tudo.
Preciso de certezas, de rumo certo, de um caminho a percorrer.
Desta vez não adormeço. Desta vez falamos durante toda a viagem.
Ele, segura-me a mão, a tempos, enquanto guia, e isso ajuda.
Ele segura-me, simplesmente.
Para-se junto ao mosteiro. É tarde já. Passagem de um dia para o outro. A noite fresca. Os cafés fechados. O cheiro dos plátanos. O silêncio. As mangas compridas do casaso dele a cairem-me sobre as mãos e a protegerem-me da brisa da noite. O edifício, enorme, sólido, senhor do tempo e da memória, e nós, os dois (os três), apenas, e os nossos passos lentos, cadenciados e sincrónicos, à volta dele. A nossa pequenez junto às portas, as pontas dos nossos dedos a tactearem os sulcos deixados nas suas pedras há mais de seiscentos anos já. Santa Maria da Vitória.
Desta vez não soavam fados nas esplanadas, mas era igualmente bom.
Que afinal devemos sempre voltar aos sítios onde nos sentimos bem.
Depois, no final da viagem, no final de tudo, o quarto e a porta que se fecha, por fim. Não o que eu queria, não como queria. Mas fecha-se; finalmente.
Porque a vida a dois é, afinal, tão mais simples do que tudo o resto. Tão mais compensadora. Tão mais forte.
Porque a vida pode caber apenas entre quatro paredes, e os embates e os desgastes, quotidianos, constantes e variados, vêm de fora, sempre.