Lá em baixo, na garrafeira há várias garrafas. Lembro-me muito bem de, na adolescência, me madarem descer as escadas ingremes que dão acesso à garrafeira com o chão de xadrez e traves de madeira no tecto, à garrafeira iluminada apenas por um pequeno óculo e cheia de teias de aranha e com pó de muitos anos acumulado nas garrafas, silenciosamente arrumadas em grupos, maiores ou mais pequenos.
Algumas dessas garrafas têm rótulos comerciais, como qualquer garrafa que se compra nos locais previsíveis, outras, em grupos sempre mais pequenos que as anteriores, têm rótulos manuscritos com data de colheita e pouco mais. Mas existem outras. Existem garrafas sem rótulo algum, sem nada que as identifique ou diferencie. Estão lá apenas. Mais isoladas do que as outras, quase sempre com mais teias de aranha e mais pó.
Mandaram-me lá, já lá vão muitos anos, descer e ir buscar uma dessas garrafas sem rótulo, e lá fui, como que tele-guiada pelas informações precisas que me tinham dado. Não tinha rótulo, mas sabiam que existia, sabiam exactamente onde estava. Não tinha rótulo mas estava mais diferenciada do que as outras. Não tinha rótulo mas valia mais do que todas as outras.
Era por isso que não tinha rótulo: era única e inconfundível.
Mas eu precisava de rótulos nas minhas coisas. Durante anos e anos, desde que tenho consciência de mim, guiei-me primeiro pelos rótulos que os outros tinham posto, depois fui adquirindo a capacidade de, também eu, pôr rótulos. Rótulos nas situações, nos sítios, nas pessoas, nas prioridades... Rótulos em tudo. De cores diferentes, arrumados por categorias, tão completos quanto possível, com ano de colheita, instruções para uso, análise química dos componentes...
Tentava diferenciar tanto quanto possível. Eram rótulos muito completos para tentar evitar cair no facilitismo reductor de generalizar e agrupar coisas demasiado diferentes. Mas eram rótulos.
Por isto ou por aquilo... não importa porquê, na garrafeira que é a minha vida, apareceram garrafas dessas, dessas sem rótulo algum.
Não sabia o que fazer com elas. Quis inventar, insistentemente, um rótulo qualquer que lhe pudesse colar, mas nenhum servia. Nenhum.
E então?? Deitava as garrafas fora? Mas se elas, como as da garrafeira de verdade, eram mais valiosas do que as outras com rótulos? Se eram únicas... não precisava de lhes por um rótulo para saber que o eram e que não se confundiam com nenhuma outra.
Guardei-as assim.
Mas depois... depois... vi mais. Vi que os rótulos que tinha colado nas outras garrafas estavam, em alguns casos errados. E arranquei uns quantos.Não sei quanto tempo vou conseguir viver sem os rótulos no que me rodeia, não sei se não darei mau uso às coisas por não estarem devidamente rotuladas, não sei se não misturarei algumas, não sei se não cometerei erros, não sei se não me arrependerei de fazer uma coisa que comporta bem mais riscos do que seguir as intruções lineares contidas nos rótulos, não sei se conseguirei gerir por muito tempo situações para as quais não encontro livro de instruções, não sei se de um momento para o outro não me vou sentir perdida no meios destas coisas... mas apetece-me que seja assim, apetece-me descobrir sentidos novos para palavras que usava antes em contextos diferentes, e palavras novas para coisas que, afinal, não se adequam às que lhes tinham sido atribuidas. Agrada-me, até, não encontrar palavras para algumas coisas. E ainda que não me agradasse... não seria por isso que as coisas seriam diferentes.
Não sei por quanto tempo será assim, mas agora é. Agora é... e está um dia de Primavera lindo, lindo!