A última metade da tarde de ontem foi dedicada à minha égua, que o mesmo, se calhar, é dizer que foi dedicada a mim. Às duas, ao tempo, à liberdade, ao vento, ao Sol, à velocidade, à cadência, à cumplicidade, à amizade, a tantas coisas e a nada, ao mesmo tempo. De cabeça vazia e leve, ou diletante e cheia de assuntos.
Os pensamentos em cima dela, à velocidade do galope, ao ritmo do trote ou ao balanço suave do passo; chegam e partem sem serem escolhidos, sem fazerem qualquer tipo de conjunto ou de sequência entre eles. E isso, agrada-me.
Ocorreu-me um, estranho. Percebi, mas ainda em contornos pouco definidos, assim em pinceladas largas... que o afecto pode tomar muitas formas. E, aqui, estou a falar do afecto por um homem.
Percebi o que já sentia há algum tempo mas que não verbalizava nem, tão pouco, encarava.
Pode. Pode variar na intensidade, no género... e pode - foi aqui que esbarrei com uma novidade para mim - existir em simultâneo por mais do que uma pessoa. Géneros diferentes, em simultâneo, independentemente da intensidade de cada um.
Fui educada de outra forma.
Na vida de uma menina séria só há lugar para um homem. De preferência, um único, em toda a vida. Mas isso já é perfeccionismo.
As amizades entre pessoas de sexo diferentes são arriscadas, para não dizer impossíveis. E mais cedo, ou mais tarde, dão problemas.
Fui educada assim!
Claro que aprendi a dar uma margem de manobra a isto. Claro que tive sempre amigos rapazes, mas não muitos, e com algum cuidado, tentando fechar os olhos ao facto de serem homens e mantendo uma distância de segurança.
E, se estava envolvida com alguém, as coisas restrigiam-se ainda mais. Não havia mais nada nem ninguém na minha vida.
Ora, reparei, que levei seis anos assim. A viver em função de outra pessoa, a isolar-me voluntáriamente, a afastar pessoas, a virar a cara, a sentir-me culpada por tomar um café com um amigo ou por trabalhar de uma forma mais próxima num assunto qualquer com um colega.
Disparate. Quando crescemos percebemos que não é nada assim. Aprendemos a dividir as coisas. Percebemos que há uma panóplia de sentimentos que se podem ter por um homem, o que significa também que se pode sentir coisas diferentes por vários, aos mesmo tempo. Na verdade, percebemos que é assim mesmo, que sempre foi. Mas aprende-se a gerir esses sentimentos sem culpas nem embaraços.
Pode amar-se perdidamente alguém mas, se até nem temos nenhum relacionamento, podemos sentirmo-nos muito bem na companhia de outra pessoa que reconhecemos ser um encanto. Assim mesmo, sem que isso negue o primeiro sentimento ou, sequer, o menorize.
Às vezes, há coisas que se tornam claras de um momento para o outro.
É assim, o afecto é um conjunto de pedrinhas coloridas que formam imagens diferentes à medida que se viram, assim mesmo, como no caleidoscópio da Disney que me deram em pequenina. Imagens diferentes; umas maiores outras mais pequenas, com formas diferentes, cheias de cores. Há uma de que gostamos mais, que é mais especial do que todas as outras, que ansiamos que apareça de novo de cada vez que rodamos o caleidoscópio... mas também existem as outras todas.